domingo, 27 de março de 2016

Sacerdócio, Uma Missão Apocalíptica






Iniciemos nossa investigação evocando a fala do autor de origem inglesa Walter Gorn Old, mais conhecido como Sepharial,  em sua obra Manual de Ocultismo (1984) que situa-nos com acerto no caminho pelo qual prosseguiremos.

"Quem se dedica a governar e orientar esses poderes misteriosos empreende uma tarefa ousada. Deve levar em consideração que está penetrando o mais profundamente possível  nas mais elevadas leis da Natureza. Nunca deve entrar nesse santuário sem um temor reverente e o mais profundo respeito pelos princípios que tenciona colocar em funcionamento."


"Eu não posso ensinar nada a ninguém, 
eu só posso fazê-lo pensar."
Sócrates.

Ordo et Caos

Comecemos olhando para as mais remotas idades e civilizações, onde notamos caracteristicamente a figura do sacerdote sempre presente. Aqueles seres do grupo ou da tribo que eram dotados de conhecimentos metafísicos, indivíduos que exploravam as propriedades secretas de certos objetos ignorados pelo vulgo, que percebiam a simpatia entre a natureza e o homem, sujeitos capazes de verdadeiros milagres e que, das religiões totêmicas às hodiernas, sempre estão relacionados de alguma forma ao contato com o mundo espiritual. Xamãs, pajés, brâmanes, hem-Netjer são alguns exemplos de sacerdotes que existiram em tempos remotos e alguns ainda fazem-se presente na atualidade.

Geralmente suas funções vinculavam-se à(s) divindade(s) superior(res) cultuada(s) (seja alguma específica, seja a natureza de forma geral, etc.) e, reinando nas tribos a ideia de submissão para com as divindades -tudo dependia do apreço dos Deuses para com eles, sua colheita, sua vida, etc. - construía-se uma imagem de respeito e dependência para com as entidades responsáveis por esta mediação homem-divindade que nas épocas medievais eram considerados detentores da sabedoria divina, propagavam seus conteúdos de uma forma lírica, mitológica e por meio de uma rica linguagem hieroglífica. Eram os sujeitos-do-saber.

Conservavam-se separados dos demais em um tipo de introspecção e isolamento necessários ao seu desenvolvimento, pois era primordial que as práticas ocorressem longe de olhos ínscios (dentre outras razões sociais, obviamente). De modo geral o procedimento para a escolha de um novo aprendiz realizava-se como a seguir:


  • Este era selecionado pelo sacerdote vigente (quando o mesmo encontrava-se em sua face anciã ou quando, mediante tais e quais práticas, acreditava ser necessário); 
  • Analisava qual criança detinha capacidades vocacionais para desempenhar aquele papel, que abarcava tanto a parte espiritual (desempenho do sacerdócio) quanto uma função social (conselheiro, chefe, sábio da tribo);
  •  O escolhido era usualmente retirado do contato com seus familiares e passava a viver como um aprendiz daquelas artes. 
Evidentemente que este processo não era/é algo fixo e pode variar dependendo da cultura, época e construtos sociais. Como bem sabemos existiram sistemas bem mais científicos mesmo nas idades ancestrais.

O papel de nosso texto é pensar um pouco mais sobre o quê faz um sacerdote. Guiar, instruir, dialogar, debater com o discípulo? Doar-se, representar a voz da divindade é um emprego difícil de desempenhar, principalmente quando este ofício é levado à serio. Decerto esta austeridade é cada vez menos enxergada e notamos facilmente a intitulação crescente de mais supostos sacerdotes sem a ínfima noção do que esta palavra ou esta atribuição requerem. O dicionário apresenta-nos uma visão deveras ampla do que pode significar o sacerdócio, porém, detenhamos-nos, aqui, à uma visão inclinada para a questão esotérica e mágicka. Quem sabe possamos mediar o leitor à um panorama mais factível.

"Feliz aquele que transfere o que
 sabe e aprende o que ensina."
Cora Coralina.

Sophia

O sacerdote em seu papel litúrgico e hierático é aquele que representa os preceitos, os dogmas e as ideologias existentes em determinada religião, forma de pensar, sistema, etc., sua figura é a encarnação das ideias que retrata e do conhecimento que dissemina, ou seja, detém uma imensa responsabilidade e um dever enorme para com aqueles que representa, sejam os membros de seu grupo, seja a egregora à qual está relacionado. É axiomático seu dever coletivo. 


A palavra sacerdote, vista na maioria dos meios de informação, vem do latim -sacerdos- e quer dizer "aquele que oferece sacrifícios", outra análise, que também tem como base o latim, nos fala da etimologia sacer (sagrado) + dotis (representante) ou representante do sagrado. Ambas as interpretações nos oferecem uma visão deveras possível e veremos o motivo mais à frente. 

Dentre as muitas relações que podemos fazer à respeito da palavra sacerdote está a palavra "mago", que é como frequentemente vemos sendo chamados os praticantes de magia, porém diz-se que a palavra (mago) vem do idioma persa e quer dizer algo como "pertencente à uma classe sacerdotal", as palavras sacerdote e mago seriam como sinônimos, entendendo os termos como pessoas que detém um grande conhecimento, mas não apenas uma compreensão voltada às práticas, e sim um entendimento da ciência mágica, envolvendo os âmbitos metapsicológicos e de autoconhecimento. Lembremos sempre da gloriosa máxima Nosce te ipsum.

Nas tradições iniciáticas existe um período que denomina-se diferentemente de sistema para sistema, mas que envolve os mesmos preceitos e determinações. Quando começamos os estudos e práticas básicas relacionadas aos nossos interesses magísticos e conseguimos através de nosso querer seguir veementemente aqueles passos iniciais, é isto que, de um ponto de vista superficial, caracteriza-se como  Dedicação. É uma fase essencial para provarmos para nós mesmos que é aquilo que queremos. As técnicas repetitivas, vivências, as posições e estudos realmente nos fazem meditar sobre nossos desejos e refletem com efetividade o caminho árduo que virá. O sacerdócio é tenacidade.

Este encargo divino não é e nem deve ser necessariamente uma obrigação para os estudantes do oculto e é interessante que só seja desempenhado por aqueles que sabem realmente com o que estão lidando. Nota-se visivelmente esta dificuldade quando nós mesmos passamos por um processo mestre-discípulo. São dois mundos, duas mentes distintas, paradigmas, formações e subjetividades que diferem psiquicamente, mas que devem ligar-se perspectivando algo maior (talvez selecionar um aprendiz desde seu nascimento fosse uma técnica também para minimizar os contrastes ideológicos). Isto sem falar nos sacerdotes de grandes grupos, que lidam com diversas pessoas.


A entrega, o esforço sucessivo, as culpas que decaem sobre quem desempenha esta função, as decepções causadas por expectativas que são miseravelmente frustradas, as crises ideológicas, o não ser o bastante são alguns pontos enfrentados por quem encarrega-se de guiar um neófito. 

Ensinar a alguém as artes da sagrada ciência não é apenas cuspir o adquirido, é guiar como um Pai guia um Filho e com mais responsabilidade até, pois está lidando-se ali com uma zona superior, com forças que são tão variantes, volúveis e perigosas aos olhos alheios e que se não forem tratadas de uma forma coerente pelo sábio, podem manifestar-se de uma forma fatal. 
É indiscutível que cumprir aquele sacro-serviço ajuda o sujeito (que habilita) a chegar mais perto de si mesmo e da divindade, porém o egoísmo torna-se impotente quando a realidade aparece e a doação ao outro (que está em desenvolvimento) mostra-se muito mais necessária do que voltar os olhos para si. O sacerdócio é renúncia.

Não são todos que estão dispostos a abrir mão de seu egocenstrismo, especialmente em uma sociedade que absorve cada vez mais uma imposição do padrão narcísico e que visa principalmente o gozo individual. Ser agente da iniciação de outrem é ser um exemplo, é saber instruir através da ação, é poder orientar o outro por um caminho que já foi traçado, mas que é agora distinto pois é vivido por um ser diferente, "os progressos obtidos por meio de ensino são lentos; já os obtidos por meio de exemplos são mais imediatos e eficazes", diz-nos Seneca. É recriar-se e ajudar na construção da imagem divina naquele estudante, é suscitar a dúvida mas sabendo exatamente o que aquilo causará, pois estará à sua disposição a tarimba do que foi vivenciado previamente. É participar da metamorfose causada pela iniciação, fazendo de um Vir-à-ser ideal, um Ser possível. O sacerdócio é sacrificar-se (sacro-ofício = ofício sagrado).

Viver a noite escura da alma talvez seja uma sensação única de angústia, mas possivelmente este conceito possa ser dirigido aos conflitos vividos quando trata-se de sacerdócio. Os questionamentos surgem continuamente como se sempre fosse preciso aprofundar-se, mergulhar na ciência. E é compreensível, tendo em vista que aparecerão demandas de todos os tipos e pontos de vistas diferentes, estar preparado com o saber é fundamental. Muitas vezes é necessário voltar-se para sua sombra, encarando os demônios que ressurgem como os dias em que não se espera, mas chove. Em outras palavras, as vezes é necessário morrer (na acepção arcana da palavra).

Além da necessidade ininterrupta de estudar, há também uma força que sempre está vigorando, que é a tarefa do sacerdote em autoconhecer-se profundamente e esta busca nunca acabará, a não ser que trate-se de um ser extremamente iluminado à respeito de si, há sempre do que inteirar-se. O arcano IX é o arcano da iniciação, da transformação gestacional e espiritual, é o dever daqueles que buscam a ascendência mágicka, principalmente o sacerdócio, entender e vivenciar os mistérios desta lâmina tão esplêndida (não tiro a importância dos outros Atus, na verdade é vital que mergulhe-se no mundo do tarô, porém é indubitável a importância deste arcano em específico para o assunto em questão). O sacerdócio é entender O Eremita.


"Ensinar é aprender duas vezes."
Joseph Joubert.

Realitatis

Carl Gustav Jung (1875-1961), discípulo consagrado do Pai da Psicanálise e criador da enigmática e esplêndida psicologia analítica, em seu livro A Prática da Psicoterapia (1966) presenteia-nos com uma frase de significância excepcional:

"Não há despertar de consciência sem dor. As pessoas farão de tudo, chegando aos limites do absurdo para evitar enfrentar a sua própria alma. Ninguém se torna iluminado por imaginar figuras de luz, mas sim por tornar consciente a escuridão."

Esta frase denota com maestria o sentido da busca à pedra filosofal, tão almejada por muitos, mas conquistada apenas pelos verdadeiros alquimistas. A iniciação imbui uma incumbência enorme no sentido amplo da palavra, não é à toa que nos templos antigos de iniciação aos segredos da magia egípcia o candidato passava por diversos testes, provas e situações que provocavam um questionamento íntimo, em alguns casos a morte era seu atestado de reprovação. Hoje vemos que esta filosofia de mistério, de profundidade e de sacrifício está ruindo, as iniciações são feitas online, via skype ou contam com pouquíssima preparação. 

Ninguém deseja enfrentar suas faces mais ocultas, seus desejos inconscientes, seus demônios. Nem sempre as experiências que temos (sonhos, visões, intuições, insights) falam-nos sobre algo externo como adivinhação ou profecias, mas geralmente dizem muito mais de nós, de nossos medos, de nossas angústias, e, em muitos momentos, de nossos anseios mais maléficos, como bem nos previne Paracelso, abordando a temática da adivinhação através do sonho, que intima-nos a utilizar "a razão e senso de discriminação para distinguir o falso do verdadeiro". 
A sociedade hoje não suporta dores, existe sempre à seu alcance um fármaco, não resistem à decepções,  sempre substituem o objeto perdido por outro, cedendo à uma pulsão que têm como karma a repetição, não enfrentam mais os obstáculos quando estes mostram-se demasiados difíceis, simplesmente desistem. Vivemos uma fase de recalque massivo das características constitutivas do humano. O sacerdócio é dor.

Os caminhos que levam à consciência dos mistérios são relativamente graduais e cada passo condiz ao entendimento de determinadas concepções - seria fascinante se conseguíssemos obter o entendimento das temáticas mágicas de uma vez só, porém, as coisas não funcionam sempre como queremos - é assim que a maioria dos sistemas dispõem os conhecimentos, por graus. 

As revelações dos dogmas, das leis e dos assuntos referentes à cada grau dizem respeito ao nível de lucidez do indivíduo na escalada arcana. Recorro à um trecho do livro de Eliphas Levi (1810-1875), Dogme et Rituel de la Haute Magie (1854), que nos situa sobre a acepção do dever sacerdotal:

“Não se inventa um dogma, mas se vela uma verdade e se produz uma sombra em favor dos olhos fracos. O iniciador não é um impostor, é um revelador, isto é, segundo a expressão da palavra latina revelare, um homem que vela novamente. É o criador de uma nova sombra."


Levi concentrou fortemente sua atenção na lei das analogias, e em seu texto não enfoca diretamente no papel do sacerdote, sempre tratando de assuntos fortes subliminarmente, de uma forma hieroglífica, esta passagem de um de seus mais consagrados escritos contém muitas lógicas, mas aqui indica-nos bem o papel profundo deste ofício que é o de velar de novo, velar de uma outra forma, velar de acordo com seus paradigmas. O iniciador não é um impostor por velar a visão de seu discípulo, pois mesmo que a nova sombra seja nada mais que isto o pupilo depara-se consigo mesmo e este contato é que talvez leve à um desvelamento. O embate de energias antitéticas que complementam-se em verdade. Sem dúvida a letra Tau do alfabeto antigo nos mostra um pouco mais sobre a acuidade existente na força destes conceitos, o leitor interessando deverá estudá-la.

O papel do representante sagrado nada mais é do que estender um novo véu à vista de seus seguidores, mas é um véu que deve levar não mais ao caminho do ignorante, e sim encaminhar à uma iluminação própria e íntima, que faz-se pessoal por ser alcançada individualmente. A sombra criada pelo mestre é uma provocação, um repto que tem como guia a desconstrução visando uma construção nova, é necessário criar uma nova tela para que, no fim, a real e individual apareça. 
Como nos fala similarmente Galileu Galielei e, mais atualmente, Paulo freire, "ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para sua própria produção ou a sua construção". Um discípulo que torna-se mestre não pensa exatamente como seu instrutor, mas detém os conhecimentos por ele abordados de uma forma subjetivamente única. O sacerdócio é uma missão apocalíptica.

Este é, resumidamente, o que faz um modelo hominal da força e voz divinas. Desconstruir-se é reconstruir-se de uma outra forma e isto é basilar para ser um fator similar e análogo no Outro. Não há nada errado em inspirar-se em grandes seres como São João ou Hermes, mas a inspiração apenas fomenta a subjetividade na obtenção de uma concepção única, singular. Lembrar da enorme importância mágicka do Caos sempre frutifica nossas reflexões.
Esclareço, por fim, que não quis, com minhas palavras, incitar à desistência ou ditar uma forma fixa e limitada do que pode significar esta missão, mas positivamente germinar o questionamento em suas mentes e reedificar o sentido profundo desta palavra, pois nos dias de hoje perdeu-se a nobreza, a honra e a notável sabedoria presentes desde imemoriais fases do desenvolvimento da espécie neste personagem. 


Revogar estes ideais modernos de sacerdócio é extremamente importante, a ótica deste compromisso cada vez mais desgasta-se e modifica-se para um prisma de descaso e inverdade espiritual. Ainda vemos alguns poucos que lutam fortemente para a manutenção de um modelo elevado, e estes devem ser exaltados, pois não cederam à deturpação ideológica trazida por uma sociedade que está cada vez mais preguiçosa, egoísta e desleixada para com os assuntos ocultos. 


Concordo, é claro, que não há como seguir todos os princípios adotados nos tempos antigos, tendo em vista que tudo transforma-se, porém a essência não deve diluir-se em formulações totalmente vazias e incertas, o modelo é apenas o símbolo fomentador. Poderia, também, explanar extensivamente sobre os ganhos obtidos espiritualmente ao exercer-se um sacerdócio coerente, engajado e libertador, mas deixemos para uma outra oportunidade. Espero que o texto tenha trazido uma perspectiva interessante ao interlocutor e que, caso este deseje adentrar nos caminhos iniciáticos e sacerdotais, pondere tudo o que foi escrito como quem analisa atenciosamente seus desejos por algo decisivo em sua vida, com atenção e prudência, pois não usei hipérboles ou excessos, falei nada mais do que a realidade. Aqueles que encaram esta peleja hão de concordar.  

Igor Pietro, 22/03/2016.


2 comentários:

  1. Igor,

    Em tempos de sarcedócio pelo EAD...realmente, teu texto é extremamente coerente e importante.

    Eu particularmente não conheço uma pessoa em que eu possa chamar de mestre, ou seja, aquela em que eu possa ter o privilégio de aprender e cursar a caminhada mágica ao seu lado e por mais que eu entenda que os tempos modernos sejam chegados...ainda sim, vejo que o sacerdócio se constrói graduativamente, sem pressa e dentro de uma convivência mestre discípulo.
    Hoje, acompanho algumas pessoas intituladas "sacerdotes" e vejo o quão raso são seus textos, seus discursos, seus argumentos e seus métodos e sempre me questiono: - Será que são realmente sacerdotes com ordens e direitos do plano astral superior ? ou são pessoas que se auto-intitulam assim por causa de um curso na "academia" ?

    Concordo totalmente contigo quando vemos o sacerdócio como uma tremenda responsabilidade sobre vidas e sobre destinos e que apenas num eterno re-construir-se é que o sacerdote consegue dar o melhor de si ao seu discípulo, ao seu próximo.

    Parabéns pelo texto.

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    1. É... Infelizmente temos pouquíssimos referenciais hoje do que poderia ser o exercício sacerdotal, são tempos de mudança e nem sempre estas acarretam transformações positivas, principalmente tratando-se de Magia. Porém, cabe ao buscador interessado a reflexão e meditação na célebre frase "quando o discípulo está pronto, o mestre aparece".

      Agradeço enormemente pelas positivas considerações e fico feliz em saber que o texto ajudou em suas reflexões.
      Paz e luz.

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