O perigo que espreita a dúvida
Vulgāris Oculus
“Caminhei por
incontáveis estradas, pisei em muitos lugares, mas quem eu era não foi o
bastante para solapar quem eu parecia
ser.”
A visão que a maioria
da população tem à respeito da bruxaria, ocultismo e esoterismo em geral é
deturpada de uma forma tão irreal quanto nos permite a mais esquizofrênica superstição. São muitos pré-juízos, pré-conceitos e a visão turva, que à princípio
serviria apenas como exemplo de uma alienação bem-feita, torna-se um manancial
de críticas insipientes, mas que devem ser encaradas com seriedade e engajamento, por motivos que entenderemos a seguir.
Desta forma mostra-se estimulante construirmos um pensamento capaz de fazer-nos compreender um pouco
mais sobre a forma como tais pensamentos impactam (ou não) no âmbito do
estudo e prática mágicka.
Não tão surpreendentemente,
quando perguntamos à alguém que seja leigo em qualquer assunto ligado
à espiritualidade (como a maioria das pessoas o é, a não ser por um fio sutil
de conhecimento bruto) sobre suas opiniões à respeito
destas práticas este ou esta responde de uma forma abrupta, preconceituosa ou,
no mínimo, dribla a questão para escapar de uma indagação tão desnecessária a
seus olhos. Este fato, como muitos outros, decorre de um processo histórico-social que existe por
trás de toda a sistematização dos credos mais comuns.
A crença nos
mistérios que circundam a meia-noite, nos enigmas que existem em uma
encruzilhada, nos espíritos que perambulam e nos muitos outros saberes populares provoca-nos a questão de
que a fé do coletivo em relação ao mundo esotérico é repleta de inferências
puramente falaciosas, é um conhecimento que transfere-se sem constatação ou
necessidade de ser estudado, não percebe-se ao menos a vontade de analisar algum
fenômeno desta natureza, pois o mundo espiritual está supostamente sempre repleto de muitos
demônios, espíritos, sangue e pecado, quem seria Louco o bastante para adentrar
em tal antro?! Mas, n'uma visão menos... drástica, não seria mais cabível, ao invés de dizer que o mundo
espiritual é cheio de atrocidades, falar, antes, que ele é cheio de
estereótipos?
Estereótipo:
1. gráf chapa ou clichê us. em estereotipia; estéreo, estereotipia.
2. p.met. gráf trabalho impresso com chapas de estereotipia.
3. algo que se adequa a um padrão fixo ou geral. Esse próprio padrão, ger. formado de ideias preconcebidas e alimentado pela falta de conhecimento real sobre o assunto em questão.
"o e. do amante latino"
Ideia ou convicção classificatória preconcebida sobre alguém ou algo, resultante de expectativa, hábitos de julgamento ou falsas generalizações.
4. aquilo que é falto de originalidade; banalidade, lugar-comum, modelo, padrão básico.
Vemos então que a noção de estereótipo define com rigor o pensamento da massa em relação ao estudo do
ocultismo de uma forma geral. Podemos abranger este termo à questões étnicas, culturais, de gênero, de classe social e inúmeros outros pontos específicos, mas a questão
tratada aqui é importante para sabermos de que forma isto estrutura-se e em quê
isto interfere em nossa área. O estereotipamento ocorre quando atrelamos certa
imagem a qual estamos sendo expostos à categorias cognitivas pré-estabelecidas, quando vemos algum
comportamento, traço físico, etc, e imediatamente (como algo automático,
mecânico, inconsciente) emparelhamos com alguma experiência similar, esperando
determinadas atitudes e/ou ações.
Alguns teóricos (geralmente àqueles mais voltados aos processos de aprendizagem e desenvolvimento, como Piaget, Wallon, etc.) dizem
que este tipo de raciocínio faz parte de uma função necessária para o sistema
cognitivo, que seria a função generalizante, ou seja, de acordo com tais
características já montamos um tipo de perfil do que pode-se esperar daquela
pessoa ou grupo, isto faz com que não gastemos tempo precisando conhecer,
aprofundar-se, etc., simplificando o real e favorecendo uma visão esquemática.
Temos no ocultismo e bruxaria uma história longa de lutas travadas contra poderes dominantes e para entendermos mais sobre o conceito de estereotipo, forma como a sociedade, de uma maneira geral, concebe, compartilha e
julga determinados grupos sociais, cabe um exemplo: Na época medieval era inaceitável que uma mulher (eram mulheres em sua maioria) pudesse deter algum tipo de poder, poder este que estaria além do que outros homens poderiam manipular ou imaginar, isto foi uma das principais causas da caça às bruxas, o machismo e a desvalorização das capacidades femininas. E à medida que o tempo passava o conhecimento destas forças tornava-se imperativamente mais recluso e as pessoas que as manejavam viviam isoladas, e quando eram descobertas, a inquisição (seja familiar, social, religiosa) continuava a ocorrer.
Estes embates
epistemológicos e ideológicos que, juntos, delimitaram um extenso processo
histórico, fizeram com que as pessoas que viviam a Arte fossem caladas e isto
contribuiu de maneira significativa para a disseminação de preconceitos,
boatos, extremismos e deturpações por aqueles que estavam sempre preocupados em
perseguir quem quer que seguisse este tipo de valor, que, participantes do
processo histórico, formaram o que hoje conhecemos pelo estereótipo do bruxo e
do feiticeiro, que por sua vez foram atribuídos à qualquer pessoa que
desenvolva qualquer tipo de vivência espiritual, ou seja, vemos que a
atribuição de características está relacionada ao compartilhamento das
opiniões sociais, com isto entendemos o motivo de tanta marginalização para com
as religiões e praticantes (que nos tempos antigos eram vistas como detentores
de grande sabedoria e poder), que, não tendo como propagar sua credulidade,
seus argumentos e estórias dentro da sociedade foram vítimas de uma repressão
ideológica formada à partir de um sistema popular tirano e limitante para o
sujeito. Viraram folclore.
Malleus Maleficarum
A cristalização das compreensões a cerca do conhecimento mágicko traz à tona não apenas a função estereotípica comum, não formula apenas pensamentos mecânicos à cerca das atitudes a se esperar, mas envolve conjuntamente duas temáticas que também estão inerentes à ótica do estereótipo, que são o preconceito e a discriminação, e é neste conjunto que reside o prejuízo. Os meios de comunicação (séries, novelas, jornais, rádio) são fortes influenciadores dos estereótipos mantidos e compartilhados pelo coletivo e não é incomum acharmos entre os programas uma bruxa horripilante, com verrugas, falando baixinho e grosso ou quem sabe são evidenciados fatos horrorosos de crianças mortas em supostos rituais de magia negra.
A cristalização das compreensões a cerca do conhecimento mágicko traz à tona não apenas a função estereotípica comum, não formula apenas pensamentos mecânicos à cerca das atitudes a se esperar, mas envolve conjuntamente duas temáticas que também estão inerentes à ótica do estereótipo, que são o preconceito e a discriminação, e é neste conjunto que reside o prejuízo. Os meios de comunicação (séries, novelas, jornais, rádio) são fortes influenciadores dos estereótipos mantidos e compartilhados pelo coletivo e não é incomum acharmos entre os programas uma bruxa horripilante, com verrugas, falando baixinho e grosso ou quem sabe são evidenciados fatos horrorosos de crianças mortas em supostos rituais de magia negra.
Você que está a ler o texto com certeza sabe que as coisas não são assim, mas infelizmente esta é a visão da maioria e é difícil até mesmo para nós dizermos que já não fizemos parte desta, grande parte com uma visão teocêntrica, que enxerga como certa apenas a sua religião. "Visões, revelações, incorporações, fenômenos inexplicáveis podem acontecer, claro, porém apenas em minha religião". Uma matéria publicada
em 2015 na Folha de São Paulo revelou que a cada 3 dias, em média, uma denúncia
de intolerância religiosa chega à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência
da República, isso mostra que ainda hoje vivemos uma inquisição ideológica e
muitas vezes, ainda, violenta, principalmente no Brasil, ninho de infindas
religiões (hoje temas como o Candomblé estão em constante crescimento como nunca ocorreu, porém, ainda assim, casos de violência contra casas e devotos são vistos frequentemente).
Os estereótipos do
ocultista calado, que não fala muito, que apenas usa preto e não tem amigos ou
aquele que é visto como o louco, barbudo, com muitos anéis e colares
(extremismos novamente) são implantados também por muitos livros e programas de
TV (hoje uma série televisiva que trata sobre o sobrenatural não pode abrir mão da figura - que é construída visando unicamente audiência, obviamente, da bruxa) e, como toda alienação ocorre, nem percebemos se (ou como) aquilo está nos
influenciado.
A nossa formação identitária passa também pelo âmbito social, pois julgamos sempre, estamos sendo julgados sempre e mesmo sem nos enxergarmos como a sociedade nos vê sofremos os impactos de sermos vistos de certa forma por estarmos inseridos naquele meio. Não é raro notar a estranheza de alguém que começa a estudar Magia ao ver que pessoas com roupas populares, personalidades e feições comuns repartem do mesmo interesse. Por ser uma forma de aprendizagem utilizada quase que mecanicamente não nos damos conta do quanto estes padrões são absorvidos por nós e incorporados em nossas vidas.
A nossa formação identitária passa também pelo âmbito social, pois julgamos sempre, estamos sendo julgados sempre e mesmo sem nos enxergarmos como a sociedade nos vê sofremos os impactos de sermos vistos de certa forma por estarmos inseridos naquele meio. Não é raro notar a estranheza de alguém que começa a estudar Magia ao ver que pessoas com roupas populares, personalidades e feições comuns repartem do mesmo interesse. Por ser uma forma de aprendizagem utilizada quase que mecanicamente não nos damos conta do quanto estes padrões são absorvidos por nós e incorporados em nossas vidas.
Grande parte dos
autores em magia, geralmente os de uma visão mais hermética, nos informam da
imprescindibilidade de abster-nos o conhecimento oculto à pessoas ignorantes,
inclusive na bíblia há uma trecho localizado no livro de Mateus que
sintetiza bem esta ideia: “Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis
ante os porcos as vossas pérolas, para que não as pisem com os pés e,
voltando-se, vos dilacerem.". Mas se notamos que os preconceitos (o real problema da disseminação irracional dos estereótipos) construíram-se com base neste não-entendimento geral, com base nesta
desinformação exacerbada, com base nesta não-habituação com o assunto magia,
como podemos fazer para que isto não ocorra novamente?
As discussões sadias sobre generalidades, sobre filosofias e ideologias jamais podem ser retiradas do cenário social em que está inserido o ocultismo, ou a história repetir-se-á mais uma vez, e não devemos esquecer-nos que estudar magia não exclui de maneira alguma outras discussões, na verdade é totalmente o oposto disto, na antiguidade os grandes Adeptos discutiam muito a filosofia, que foi o berço de todas as ciências que a lógica cartesiana separou. Reiteremos nossa vida com o poder d'O Mago.
Libertātis
Muito conquistou-se
no que tange às questões metafísicas e de inserção social no âmbito ocultista, hoje vemos muitos festivais, workshops, palestras e comemorações
públicas que visam justamente descaracterizar esta névoa mística e tornar os conhecimentos
ou a consciência de suas práticas tangível e visível à todos.
Esta abertura que
ocorre hoje em nossa sociedade deve ser aproveitada para que não ocorra o que
no passado gerou muitas mortes e angústias. Porém, mesmo com esta nova
ideologia libertária surgindo, o preconceito, discriminação, exclusão e
inquisições ainda ocorrem, estes episódios repetem-se por quê o que temos atualmente é
resultado de um processo histórico, ou seja, sua construção é de, no mínimo,
300 anos, então as barreiras ainda resistem muito consolidadas.
Tal fato não sucede apenas com os praticantes da Arte, “mas com qualquer grupo de indivíduos que
traga consigo marcas identificatórias cristalizadas de alguma forma pela
sociedade como mostra Signorini (1998) ao exemplificar a surpresa demonstrada
por uma dona de casa escolarizada de classe média, ao ouvir pela televisão um
líder regional do Movimento dos Sem-Terra, louro de olhos claros, que respondia
sem tropeços às perguntas que lhe foram feitas.
A autora segue explicando
que esta surpresa se deu por ter sido realçado a não congruência do tipo mostrado
em relação aos padrões identificatórios construídos para a categoria e consequente
suspeita de falta de legitimidade de sua posição de representante e de falta de
validade de suas ações. Dessa maneira, podemos observar o quanto os estereótipos
sociais influenciam na construção de identidades por parte da sociedade”
(Souza, p.154).

Deixar que falem o
que bem entenderem pode ser entendido como uma atitude que evita conflitos, mas
percebemos, com os exemplos vistos rotineiramente, que esta ação esquiva traduz-se nas violências e agressões de
cunho religioso, moral e valorativo, portanto é de essencial pertinência que
fale-se mais sobre o assunto, que o papel do espiritualista/ocultista/bruxo seja posto em questão em suas formas mais palpáveis, que mais pessoas engajem-se e assumam-se para que
gradativamente erga-se um novo processo histórico que seja capaz de curar as feridas deixadas por anos de silêncio obrigatório e desdém injusto.
Igor Pietro, 09/03/2016.
Parabéns pelo texto. Muito bom mesmo!
ResponderExcluirA falta de periodicidade é totalmente compensada pela qualidade dos textos. Vale muito a pena esperar.
Continue assim.
Muito obrigado!
ExcluirÉ bom saber que estou contribuindo de uma forma positiva!
Paz e luz.